Na década de sessenta e até meados da década de setenta o consulente utilizava a parte de baixo do prédio para desenvolvimento de atividade comercial, consistente na venda de produtos alimentícios, devidamente licenciada perante órgão competente da Prefeitura de São Paulo. Por volta de 1976 houve encerramento da atividade comercial. Agora, pretendendo exercer, novamente, pequeno comércio no local (no térreo) requereu e obteve da Prefeitura o competente alvará de reforma para alteração da porta de entrada e execução de dois banheiros sem, contudo, acrescer a área construída, tudo conforme projeto que anexou à consulta.
Os moradores vizinhos, receando o uso para fins não-residenciais, mobilizaram-se contra a concessão do alvará, exigindo da autoridade competente a sua revogação, fato que poderia obstar o futuro licenciamento da atividade comercial no local.
Entende o consulente que tem o direito de explorar aí a atividade comercial, porque antes do advento da atual lei do zoneamento já utilizava parte do imóvel com essa finalidade, pagando os tributos então incidentes. E mais, a Administração Pública, ao expedir o alvará de reforma para adequação à finalidade comercial, vinculou o uso do imóvel para esse fim, pelo que não poderia vedar o exercício de atividade comercial no citado prédio, movida por pressões de populares. Por fim, questiona a legitimidade da iniciativa dos moradores junto aos órgãos públicos.
Em síntese, o consulente indaga quanto à existência do seu direito de instalar a atividade comercial no local, bem como, qual seria a medida judicial cabível no caso de a Prefeitura vir a denegar a competente licença para exercício dessa atividade.
Parecer
O imóvel em questão situa-se na Z-01, que é de uso estritamente residencial, de densidade demográfica baixa (art. 19 da Lei nº 7.805/72). A atividade comercial pretendida enquadra-se na categoria de uso C-01 (art. 3o, a da Lei nº 8001/73).
Como se depreende dos fatos narrados tanto a edificação, quanto a categoria de uso pretendido não são conformes na zona de uso Z-01.
Dir-se-á que essas desconformidades teriam sido toleradas pelos arts. 28 e 29 da Lei nº 8.001, de 24 de dezembro de 1973:
"Art. 28 - O uso não conforme em edificação não conforme poderá ser tolerado, a título precário, desde que a sua localização e existência regular, anteriores à data de publicação desta Lei, sejam comprovadas, mediante documento expedido por órgão da Prefeitura.
Parágrafo único - O uso não conforme deverá adequar-se aos níveis de ruídos e de poluição ambiental exigíveis para a zona em que esteja localizado, bem como obedecerá aos horários de funcionamento disciplinados pela legislação pertinente"."Art. 29 - O uso não conforme ou a edificação não conforme poderão ser tolerados, a título precário, desde que sua existência regular, anteriormente, à data de publicação da Lei nº 7.805, de 1o de novembro de 1972, seja comprovada, mediante documento expedido por órgão da Prefeitura.
§ 1o - Nas edificações não serão admitidas quaisquer ampliações que agravem a não conformidade em relação à legislação em vigor, admitindo-se apenas reformas essenciais à segurança e à higiene das edificações, instalações e equipamento".
Preliminarmente, é preciso não confundir desconformidade de edificação com a desconformidade de uso.
A desconformidade de edificação, decorrente de superveniência de nova legislação urbanística, diz respeito às restrições pertinentes ao dimensionamento, recuos, coeficientes de ocupação e de edificação, isto é, diz respeito ao assentamento da edificação no lote.
O uso desconforme é aquele que não se enquadra nas categorias de uso estabelecidas para as diferentes zonas. As licenças de localização e de funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços, tradicionalmente, têm sido utilizadas como instrumentos de controle de uso, ou de mudança de uso do solo urbano.
O assentamento urbano articula-se com o direito de propriedade imobiliária, de natureza estática e localizada em determinado espaço territorial. Por isso as construções irremovíveis sem destruição, modificação, fratura ou dano são consideradas bens imóveis (art. 43, II do C.C.). Daí porque as normas inovadoras a respeito têm um sentido mais duradouro levando em conta a natural reação da sociedade em geral.Já o uso, outra coisa não é senão o direito que todos têm de agir, de exercitar determinada atividade, de natureza dinâmica, comportando deslocamento no espaço. Esse direito é passível de controle pelos Poderes Públicos através de normas legais, sem provocar maiores reações por parte da população em geral.
Em relação ao assentamento, quando a lei nova cria restrições antes inexistente, nem há que se falar em direito adquirido, pois a lei superveniente incide sobre uma situação jurídica já consolidada, em que a edificação aprovada e executada integrou o direito de propriedade que vinha sendo regularmente exercido pelo seu titular.
Tanto a edificação não conforme, quanto o uso não conforme, assim como, o uso não conforme em edificação não conforme, resultantes de modificações da legislação urbanística são tolerados a título precário, conforme arts. 28 e 29 da Lei nº 8.001, de 24/12/73, que revogaram e substituíram o art. 21 e parágrafos da Lei nº 7.805, de 01/11/72.
No que tange à edificação está plenamente comprovada a sua anterioridade em relação à Lei nº 7.805/72, bem como, a sua persistência até os dias atuais, com o que perdura a situação que a nova lei tolerou precariamente. E essa situação, apesar de precária nos termos da lei, perdurará enquanto existir a edificação desconforme porque, como dito linhas atrás, a edificação incorporou-se ao direito de propriedade. A lei superveniente já encontrou uma situação jurídica consolidada e preferiu tolerar a ter que indenizar. Todavia, se for demolida a edificação desaparecerá a situação de tolerância, devendo a nova edificação atender aos requisitos legais vigentes.
No que diz respeito ao uso comercial o consulente afirma ter encerrado a atividade no local, por volta de 1976, isto é, antes do advento na atual lei do zoneamento. Ainda que aquela atividade comercial tenha sido deslocada para outro local, sem solução de continuidade, não haveria que se falar em tolerância de uso desconforme no prédio assobradado. E mais, ainda que a nova lei tivesse encontrado a situação de uso desconforme e tivesse tolerado essa irregularidade, com a cessação voluntária do uso desconforme, teria desaparecido a tolerância de que cuidam os arts. 28 e 29 da Lei nº 8001/73.
Esses dispositivos, por força dos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito que, entre nós, estão guindados em nível constitucional (art. 5o, inciso XXXVI da CF), possibilitam a permanência e continuidade nas condições originárias tanto da edificação, como do uso desconformes. Com a demolição do prédio ou a cessação do uso comercial desaparecem as situações de tolerância. Nova edificação ou novo uso devem adequar-se à legislação vigente.
De fato, o Direito Urbanístico caracteriza-se pelo seu dinamismo para se adaptar às transformações e às novas necessidades das grandes metrópoles. Incumbe ao Município a execução da política de desenvolvimento urbano, objetivando a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, nos termos do art. 182 da CF.
Assim, não é possível ao ex titular do direito de uso desconforme, tolerado a título precário, vir a pleitear a reimplantação desse uso desconforme, contrariando as novas e inúmeras restrições estabelecidas, ao longo do tempo, no interesse da comunidade. Se a situação de uso desconforme desapareceu, quer por encerramento da atividade desconforme, quer por seu deslocamento no espaço, não há mais que se cogitar de tolerância. Tolerar a título precário, como diz a lei, significa tão somente que o uso conforme, tornado desconforme por superveniência de lei modificadora do zoneamento, poderá ser mantido, observadas as prescrições do parágrafo único, do art. 28 da Lei nº 8.001/73, isto é, outorga ao titular da atividade comercial o direito subjetivo de pleitear a renovação anual da licença de localização e funcionamento, enquanto mantida, no local, essa atividade. Cessada a atividade comercial desaparece o direito precariamente tolerado. A reintrodução da atividade comercial deverá obedecer as novas restrições vigentes, por se caracterizar como novo uso, a exemplo do que ocorre com a nova edificação no local do prédio demolido.
E aqui é oportuno esclarecer que embora a lei se refira à faculdade de o Poder Público tolerar a título precário, na verdade, trata-se de dever de respeitar o direito adquirido, o qual, entre nós, representa uma proibição constitucional dirigida ao legislador ordinário, ao contrário do que ocorre, por exemplo, no direito francês, onde esse princípio é disciplinado em nível legal. Por isso não comungamos da interpretação dada aos artigos 28 e 29 da Lei nº 8.001/73 por determinados autores, que negam a existência do direito adquirido porque esse princípio seria incompatível com a situação de tolerância precária. Não importa nomen juris; o importante é que o efeito imediato da nova lei de ordem pública sempre encontra o seu limite nos princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, inderrogáveis pela legislação infraconstitucional. Já decidiu o Plenário do STF:
"O disposto no art. 5o, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva"
(Adin 493-0-DF, Rel. Min. Moreira Alves, in Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Lex-168/70).
Por outro lado, o alvará de reforma, limitando-se às modificações internas, sem aumento de área, por ser ato administrativo vinculado, não poderia deixar de ser expedido a favor de quem preenchesse os requisitos contidos no § 1o, do art. 29 da Lei nº 8.001/73, como no caso sob exame. Porém, esse alvará não vincula o uso. Não importa que o proprietário tenha requerido a licença de reforma com a intenção de instalar, no local, atividade comercial. A outorga do alvará não implicou no reconhecimento do direito à reinstalação do uso comercial, pois uma coisa é a licença de edificação ou de reforma, outra coisa bem diversa é a licença de instalação e funcionamento de atividade comercial.
A vinculação entre a licença de construção e a licença de uso só existe em relação a prédio residencial e uso residencial. Isto porque o uso residencial independe de licença especial. O direito de residência está umbilicalmente ligado à própria qualificação do imóvel residencial, que se distingue dos demais pela natureza e estrutura da edificação, previamente aprovada para tal fim. O direito a uso residencial está ligado à existência do próprio prédio de natureza residencial, devidamente licenciado.
Já o mesmo não se pode dizer em relação à edificação de natureza não residencial, porque a instalação da atividade industrial, comercial ou de serviços depende de licença específica, que não se confunde com o auto de conclusão da obra. No caso, é necessária a obtenção do certificado de uso comercial C1, na forma do art. 23 da lei nº 7.805/72, ou da licença de localização e funcionamento que faz às vezes daquele certificado.
Se o alvará de reforma de prédio misto (residencial/comercial) vinculasse o uso comercial o citado alvará estaria eivado do vício de ilegalidade, por afronta à legislação do zoneamento vigente e, em conseqüência, deveria ser anulado. Contudo, a licença expedida não vincula o uso e, no nosso entender, obedeceu às prescrições legais porque não importou no agravamento da não conformidade da edificação em relação à legislação vigente.
Por derradeiro, cumpre analisar a questão da legitimidade da ação dos moradores locais exigindo a revogação do alvará expedido.
As limitações ao exercício do direito de propriedade são impostas pelo Poder Público sempre no interesse da comunidade em geral. Logo, os circunvizinhos, integrantes dessa comunidade, têm o legítimo interesse de se oporem às eventuais situações irregulares toleradas ilegalmente pelo Poder Público. O próprio Código Civil em vários de seus artigos (572, 578, 588, § 2o etc.) está a demonstrar a perfeita interação do Direito Privado com o Direito Público, de tal sorte que as limitações urbanísticas ao uso da propriedade geram obrigações e direitos subjetivos entre os vizinhos. Já de há muito está pacificada na jurisprudência de nossos tribunais a tese de que ao proprietário prejudicado com a obra do vizinho, executada em desacordo com a legislação edilícia, cabe promover ação judicial contra o seu dono e contra o Poder Público que tolerou a obra ilegal, em perfeito litisconsórcio passivo (RT 225/242; 246/168, 275/249, 312/262 e RDA 45/333). Obviamente, esse direito estende-se aos casos de uso desconforme com a lei de zoneamento.
Embora, no caso sob exame, os moradores vizinhos não tivessem o direito de se opor à expedição do alvará de reforma, porque expedido em conformidade com a lei, têm eles o direito subjetivo de impedir a reinstalação do uso comercial no local, inclusive, valendo-se de medida judicial competente caso a Prefeitura venha conceder licença de instalação e funcionamento.
Em face do exposto entendemos que o consulente não tem o direito subjetivo de reiniciar a atividade comercial na localidade pelo que descabe qualquer medida judicial que obrigue a Prefeitura a expedir o certificado de uso comercial (C-01).
É o nosso parecer s.m.j.
Kiyoshi Harada: Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo
Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo.
Advogado em São Paulo (SP). Mestrado em Teoria Geral do Processo pela Universidade Paulista(2000). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Site:www.haradaadvogados.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HARADA, Kiyoshi. Zoneamento - Desconformidade de edificação e desconformidade de uso. Não vinculação do uso às características do prédio licenciado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2008, 22:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Peças Jurídicas/15233/zoneamento-desconformidade-de-edificacao-e-desconformidade-de-uso-nao-vinculacao-do-uso-as-caracteristicas-do-predio-licenciado. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Conteúdo Jurídico
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